Essa é uma das leituras mais complicadas que já fiz. A análise não está completa, talvez nunca esteja, ainda estou pensando.
Depois de ter lido “A queda” e ter adorado, emendei com “O estrangeiro”, que é uma das obras mais conhecidas de Albert Camus. História complexa. Confesso que me faltam recursos “técnicos” em Psicologia para descrever a profundidade do personagem Meursault.
O livro é dividido em duas partes: a primeira nos conta quem é o personagem principal, suas relações, sentimentos e modo de vida; a segunda, as consequências do assassinato que cometeu.
Esse romance transcende tudo o que eu já li até agora, vai mais além do que eu conheço e entendo. É uma parábola da condição do homem. Uma alegoria da fatalidade que resulta viver como se vive.
A história acontece na Argélia (terra natal do autor). Começa com a notícia do falecimento da mãe de Meursault comunicada através de um telegrama. Ele mora em Argel e a mãe em Marengo, distante duas horas. Ela morreu num asilo. Parece que a relação entre eles não era muito fluida, não se falavam todos os dias, ele não sabe ao certo o dia de sua morte. Assim começa o livro (p.11):
Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: “Mãe falecida. Enterro amanhã. Sentido pêsames”. Nada quer dizer. Talvez foi ontem.
Parece frieza, mas quem era sua mãe? Cuidou dele ou o abandonou? Em um brevíssimo momento cita o seu pai, nunca o conheceu. Ele pagava o asilo para a mãe, não a deixou desamparada. Mas, dependendo da sua visão do mundo, se tem a sua mãe em um pedestal e a considera um ser santificado, vai julgar e condenar Meursault como a maioria faz. Asilo virou sinônimo de coisa ruim, abandono, descaso, mesmo que a pessoa esteja sendo muito bem tratada, cuidada e amada. Camus era inteligentíssimo. “Brincou” com muitos dos pré- conceitos das pessoas.
Mersault é um ser racional, que aceita sem dramas as coisas ruins da vida. As boas, tampouco lhe emocionam. Um ser que parece carecer de sangue nas veias, mas isso tudo tem a ver com a verdade. Ele não teatraliza a sua existência.
No dia do velório da mãe, ele pensa em coisas triviais, a hora que vai pegar o ônibus, pensa no chefe que o dispensou do trabalho com má vontade e nem sequer deu os pêsames. Ele resolve essas coisas, viaja, almoça, com uma sensação de não acreditar ainda na morte de sua mãe. Pode ser um mecanismo de defesa, a negação. Quando você não pensa em algo, ela não existe.
A mãe estava há três anos no asilo. A relação entre eles era incômoda, não tinham assunto. Ela gostava de ficar no asilo, estava adaptada e tinha até um namorado.
Durante o processo judicial Meursault sofreu um julgamento paralelo mais forte em relação a sua mãe, do que o do assassinato do árabe. O crime não foi premeditado, foi em legítima defesa. Meursault foi ofuscado pelo sol na praia e disparou mais tiros do que os necessários. Mas ele já estava condenado antes de ser julgado.
Muitas resenhas por aí dizem que o protagonista é frio e que não ligou para a morte da mãe. Isso é ter lido O estrangeiro muito superficialmente, não leu as entrelinhas, não interpretou e isso é o mais importante de uma obra literária. Ler ao pé- da- letra não é ler. Nem sei se vou conseguir me fazer entender aqui, mas sei que não foi simplesmente frieza.
Pensei em muitas coisas, até em sociopatia e psicopatia, no final, mas ainda refletindo, creio que Meursault é o mais equilibrado dos personagens, pelo menos age de acordo com o que pensa e sente, não como a maioria das pessoas na vida mesmo. Ser verdadeiro é coisa muito mal vista, todos estão para as aparências e para agradar os demais, não? Meursault é um símbolo de algo maior. A liberdade? A clareza, a sinceridade?
Não tenho capacidade para adivinhar o que quis dizer Camus com esse personagem, mas vou dar a minha opinião: todos somos Meursault. Quantas vezes você sorriu sem vontade? Fez muitas coisas sem vontade, porque era o estabelecido, você não tem liberdade de ser quem quer, quem é, por causa de regras sociais de conduta. Quantas vezes esteve com pessoas e lugares que não queria estar? Muitas, não? A diferença é que Meursault não faz isso, ele nos revela atos e verdades incômodas, consegue ser livre dentro da prisão que é o viver. Isso fica bem claro no final. Na prisão, mas livre.
A linha entre ser “uma pessoa normal” e um assassino é muito sutil. Se você tem uma arma na mão e uma pessoa quer te machucar, porque já te machucou antes…se ela viesse na sua direção com uma faca, o que você faria? Esperaria ser esfaqueado ou atiraria na pessoa?
Não o condenaram pelo ato de matar alguém, mas por quem ele aparentava ser durante a sua vida. Foi julgado até por ter tomado um café- com- leite no velório da sua mãe e por não ter chorado. Por ter ido à praia e ao cinema com a sua namorada no dia seguinte. Tudo isso o condenou.
Tudo o que você pensa é bom? Você, leitor, também julgou Mersault.
Analise os seus pensamentos e ações e veja o quanto de Meursault existe em você. Ainda bem que o pensamento é livre, senão estaríamos todos, eu digo todos, condenados.
Quando você não demonstrar algo que a sociedade espera, será esmagado. Continue fingindo. Meursault é inocente. Ou somos todos culpados?
Leia e coloque o personagem no banco dos réus. Brinque de juiz.
Camus, Albert. El extranjero. Alianza Editorial, Madrid, 2015. Páginas: 122
16 respostas para “Resenha: “O estrangeiro”, de Albert Camus”
a sua resenha fez-me pensar coisas que não tinha pensado aquando da minha leitura deste livro de Camus. obrigado 🙂 PedroL
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Essa é a mágica da literatura, pode existir mil interpretações, depende do leitor. Abraços!
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às vezes penso que se voltar a ler os mesmos livros, vou entender a história de outra forma 🙂
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Verdade! Muito provável!
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Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.
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Muito bom este blog! Também tenho um de literatura e de opinioes pessoais! http://letrasaventureiras.wordpress.com
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Obrigada, volte sempre!
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Espero que siga o meu blog também! http://letrasaventureiras.wordpress.com
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Que lindos! Rapazinhos da idade da minha filha! 👍🏻😘
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Espero que siga o meu blog também! http://letrasaventureiras.wordpress.com 🙂
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Depois dessa resenha o meu interesse pelo livro despertou! Já tinha pensado em ler, mas fiquei protelando,agora vou!
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Que bom! Depois conta o que você achou. Beijos!
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ótima resenha, eu tive interpretações bem parecidas do livro, só não as organizei tão bem como você fez no texto. Mas realmente essa obra é muito profunda, li há alguns meses e vivo pensando nela até hoje.. e parabéns pelo blog :))
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Obrigada, fico feliz que tenha gostado. Uma obra excelente! Um abraço
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estrangeiros são os outros
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minha opinião é muito parecida com a sua ! a conduta dele me chocou um pouco no início, porém, no decorrer da leitura fui notando q ele era somente autêntico, vivia de acordo com aquilo que acreditava! Eu gostei do personagem…muito forte.. não sei, ainda há muito oq pensar 🙂
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