Provavelmente tudo pode ser feito através da repetição uma vez que não nos damos conta de que para cada ato de fala, articulamos de forma praticamente inconsciente as palavras e o som que pronunciamos.
Toda lembrança constitui uma imagem nas nossas mentes. Essas imagens geralmente se alteram com o tempo e ficam por debaixo dos escombros que o tempo derrubou por cima da imagem da lembrança original, aquela imagem que é a perfeita reprodução de um momento exato de um fato específico na vida de alguém.
Contar uma história requer habilidade da fala e um idioma previamente aprendido. Dar voz à criações, inventar histórias ou simplesmente dizer umas mentiras dependem do uso da imaginação.
Memória e imaginação se unem para satisfazer a vontade de quem irá contar uma história. A história pode ser ficcional, um relato verídico de algum acontecimento ou pode ser a transmissão de alguma informação previamente estudada e interiorizada para em seguida, ser repassada aos ouvintes que serão os ouvintes e leitores dessa história.
Quando lemos ouvimos uma voz. A voz que se ouve na mente é a criação da imaginação de quem escreveu. A imaginação é uma força vital que dá vida aos impulsos da nossa vontade. Antes das palavras existirem, existiam apenas as formas-pensamento. As formas-pensamento são os próprios neurotransmissores ativos trabalhando, esperando um comando como em um computador só que de uma maneira totalmente diversa.
Uma vez que um idioma é aprendido e interiorizado pela pessoa, essas formas-pensamento se associam às palavras transformando-se em imagens mentais que são num primeiro momento impressões dos neurônios ativando o mecanismo da memória e quanto mais uma pessoa tiver o hábito de leitura, maior será a quantidade de neurônios disponíveis para eventuais consultas como já saber previamente o significado de determinada palavra ou simplesmente lembrar o que foi lido e criar novas associações com outras ideias interagindo consequentemente com os neurônios originados de outras leituras.
“Escuta”, diz a África milenar.
“Tudo fala. Tudo é palavra. Tudo busca nos transmitir um estrado de ser misteriosamente enriquecedor. Aprende a escutar e descobrirás que é música.”
Temos sempre a impressão de que as lembranças são apenas imagens vagas e apagadas sem som. Eventualmente quando vamos contar à alguém essas mesmas lembranças elas se tornam palavras sonoras se forem contadas de viva voz ou se forem escritas e aí, passaram a ter voz mental com associações mentais decorrentes do que foi escrito.
A memória é uma espécie de matéria que não se pode reter por completo mas, fica arquivada de alguma forma. Onde aparentemente não há voz, a imaginação cria a sua forma de expressão. Segundo Amadou Hampâté Bâ*,
“A tradição bambara do Komo Ensina que a palavra (Kuma) é uma força fundamental que emana do Ser supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. É próprio instrumento da criação:”O que Maa Ngala diz, é!”, proclama o sacerdote cantor do deus Komo.
Tem sido dito e ensinado que Maa Ngala depositou no homem (Maa) as três potencialidades do poder, do querer e do saber. Mas todas essas forças de que o homem é herdeiro jazem nele como forças mudas, em estado estático, antes que a palavra as venha pôs em movimento. Graças à vivificação da palavra divina, tais forças começam a vibrar. Em uma primeira etapa, convertem-se em pensamento; em uma segunda etapa, em som: e em uma terceira, em palavra.
Assim, uma vez que a palavra é a exteriorização das vibrações das forças, toda manifestação de força, não importa em que forma, será considerada sua palavra. Por isso no universo tudo fala, tudo é palavra que tomou corpo e forma.”
E como força criadora a palavra possui o seu oposto que é a destruição. Se por um lado em nós a memória fica deteriorada com o passar dos anos, por outro, a imaginação tem o poder de aniquilar ao esquecimento a si mesma, deixando-a por debaixo dos escombros do esquecimento que a idade e o tempo impõe à nossa mente.
Através da palavra a vida ficcional é criada pois, segundo Amadou:
“Se a palavra é força, é porque cria um vinculo de vaivém gerador de movimento e ritmo, consequentemente de vida e ação.”
(…)
“À imagem da palavra de Maa Ngala, da qual é um eco, a palavra humana põe em movimento as forças latentes, aciona-as e suscita-as, como ocorre quando um homem se levanta ou se volta ao ouvir o próprio nome”.
Enfim, é a palavra humana que cria ou destrói alguma coisa. Através dela, no texto que escrevemos, criamos o nosso próprio ritmo, a nossa cadência mágica ficcional como num ritual mágico como dizer ”abracadabra” e então, automaticamente algo é criado.
E se a palavra atua em nós modificando-nos e alterando nossas emoções ou estado de espírito é porque as palavras são forças geradoras de movimentos que atuam em nós, e nós por sua vez interagimos com essas forças como agentes criadores de novas palavras e novas forças.
* “Amadou Hampâté Bâ, escritor, historiador e filósofo malês. Foi uma das personalidades que mais contribuíram, principalmente na UNESCO (cujo Conselho executivo integrou de 1962 a 1970), para que as culturas orais africanas fossem reconhecidas no mundo inteiro.
O Fundo Amadou Hampâté Bâ, monumental acervo de arquivos manuscritos, é fruto de meio século de pesquisas sobre as tradições orais africanas.
Quase metade dos documentos desse acervo já está inventariada e microfichada. Os documentos abrangem praticamente todos os aspectos da sabedorias tradicional da África subsaariana (história, religiões, mitos, contos e lendas, literatura oral, sociologia, etc.). Concluída a tarefa, serão encaminhados conjuntos completos de microfichas às principais bibliotecas da França e da África, onde ficarão à disposição dos pesquisadores, como queria Amadou Ampâté Bâ. No momento, os interessados em consultar os documentos podem dirigir-se à Sra. Hélène Heckmann*, 10-12 Villa Threton 75015 Paris, França.”
* “Hélène Heckman, da França, ex-funcionária do Senado, é a testamenteira literária de Amadou Hampâté Bâ e responsável pelo acervo dos arquivos de seus manuscritos. Colaborou com Amadou Hampâté Bâ durante mais de 20 anos na França e durante determinados períodos da África.”
Bibliografia: O correio da UNESCO. Paris, Rio. Ano 21. N° 11. Nov. 1993, pp. 16-17.