Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas está aqui na mão, acabou de sair do forno pela Porto Editora, o último romance inacabado do escritor português José Saramago (Azinhaga, 16/11/1922 – Lanzarote, 18/06/2010). Esse livro entrou nas livrarias de Portugal hoje, mas eu já o tinha há dois dias, e eis aqui a resenha no Falando em Literatura em primeira mão! Para quem ainda não sabe, Saramago foi o único escritor em Língua Portuguesa ganhador de um prêmio Nobel de Literatura (1998).
O simpático José Saramago nos deixou saudades e uma riqueza literária ímpar.
Alabardas (2014) consta de 30 páginas de um romance que Saramago tinha começado antes de falecer e foram encontradas no seu computador. Essas páginas viraram 77 em formato livro ( três capítulos), mais três páginas de notas que o autor escreveu entre 15 de agosto de 2009 a 22 de fevereiro de 2010, são nove anotações muito espaçadas. E ainda os textos de Fernando Gómez Aguilera ( professor e escritor espanhol,1962) e Roberto Saviano ( escritor italiano, 1979) elevando a obra a 135 páginas. Esses textos são recordações e memórias, um repasso pela obra do escritor, os vi como homenagens. Vamos ver o que Saramago nos deixou como seus últimos escritos.
Narrado em terceira pessoa, o personagem principal do livro é “artur paz de semedo”, escrito em minúsculas- aliás, todos os nomes próprios estão escritos em letras minúsculas. Talvez para reforçar o caráter comum do homem ou para igualá- lo aos animais. Quem sabe?
O estilo é o mesmo que marca a obra do escritor: os diálogos sem sinais de pontuação, encaixados no texto. O personagem “artur paz de semedo”, leva o sobrenome “paz” no centro, bem o contrário do que cultua tanto na vida profissional, quanto na pessoal. O homem trabalha na faturação de uma fábrica de armas há quase vinte anos, chamada “produções belona s.a.”. Belona é a “deusa romana da guerra” (p.11). Ele está separado da mulher, que é pacifista convicta e não aguentou a profissão do marido. Até mudou o seu nome “berta”, que faz “alusão direta ao canhão ferroviário alemão” (p.13) e passou chamar-se “felícia”. O sonho de semedo é ser promovido à chefe da seção das armas pesadas.
Essa é uma alabarda medieval
Saramago coloca na história vários conhecimentos históricos sobre armamento e cinema bélico, fala sobre os diversos tipo de armas que “semedo” é apaixonado, o sujeito passa mal de emoção quando a fábrica produz novas armas pesadas e tanques de guerra. Ama filmes bélicos, assiste a todas as estreias no cinema e tem uma coleção de filmes em casa. Apesar de delirar pelas armas de fogo, jamais deu um tiro na sua vida. Não era muito de leitura, mas decidiu ler “l’espoir, de andré malraux”, que trata da guerra civil espanhola e por causa de uma frase que leu no livro “Dez simples palavras” (p.21) revolucionou todo o seu mundo interior. A leitura pode sacudir a alma, não é?
O sentir humano é uma espécie de caleidoscópio instável… (p. 23)
O personagem “artur paz de semedo” citado sempre assim com o nome completo, leu no livro de Malraux que trabalhadores haviam sabotado as armas para que não funcionassem e foram fuzilados. E ele como funcionário de uma fábrica de armas sentiu- se confuso com isso e telefonou à ex- mulher para contar. Ela sugere que “artur” investigue se a fábrica em que trabalha forneceu armas para os fascistas na época da guerra civil espanhola.
Alguns desenhos do escritor alemão Günter Grass (Danzig, 16/10/1927, também prêmio Nobel de Literatura- 1999) que ilustram o livro:
Depois de uma interrupção causada pelo lançamento de Caim e suas tempestuosas consequências, regressei a Belona S.A. Corrigi os três primeiros capítulos (é incrível como o que parecia bem o deixou de ser) e aqui deixo a promessa de trabalhar no novo livro com maior assiduidade. Sairá ao público no ano que vem se a vida não me falta. ( Saramago, 24-10-2009)
A faceta de desenhista do escritor Günter Grass. Artur paz semedo entrando nos arquivos da fábrica de armas.
A ideia do livro José explica em uma nota, ele fala como seria o futuro romance (p. 79):
Afinal, talvez ainda vá escrever outro livro. Uma velha preocupação minha (porquê nunca houve uma greve numa fábrica de armamento) deu pé a uma ideia complementar que, precisamente, permitirá o tratamento ficcional do tema. Não o esperava, mas aconteceu, aqui sentado, dando voltas à cabeça ou dando- me ela voltas a mim. O livro, se chegar a ser escrito, chamar- se – á ‘Belona’, que é o nome da deusa romana de guerra. O gancho para arrancar a história já o tenho e dele falei muitas vezes: aquela bomba que não chegou a explodir na guerra civil de Espanha, como André Makraux conta em ‘L’Espoir’
As notas são fantásticas, Saramago nos conta sobre a arquitetura do romance. Ele já tinha até pensado na frase final do livro. “Vai à merda!” (p. 81)
No dia 2 de fevereiro de 2010, decidiu mudar o nome do futuro romance de Belona para Alabardas. É de Gil Vicente, da tragicomédia ‘Exortação da Guerra’. Explicou Saramago no dia 26-12-2009.
No segundo capítulo, o personagem solta um provérbio popular português que a sua avó lhe dizia: “por bem fazer, mal haver” (p.31). Às vezes a gente faz o bem e recebe o mal em troca, por que será? Levo comigo. Boa lição para refletir. Outra coisa que ficou implícita no texto é a questão da moralidade de quem fabrica armas…ou mortes.
Uma coisa que percebi hoje. O humor de Antônio Torres é muito parecido com o de José Saramago. Leiam um e outro e comparem. Lendo José lembrei de Antônio.
Muito bom o sentido literal e literário dessa frase:
A prudência manda que no passado só se deva tocar com pinças, e mesmo assim desinfectadas para evitar contágios. (p. 62)
Profundamente emocionada terminei a leitura desse livro, que podia ser um dos melhores de José Saramago, aliás, podia ser não… é! Mesmo sem terminar. O jeito é desfrutar da obra que ele nos deixou, inclusive esses três capítulos de Alabarda e não lamentar pelo que não pode ser, além do mais, essa obra faz viajar e imaginar qual teria sido o final dessa história. A última frase do último capítulo é muito significativa, mas não vou revelar o fim da grande história. Grande Saramago.
Toda gente gosta de ser bem tratada, senhor administrador, uma boa palavra faz milagres (p.76)
Saramago, José. Alabardas, Porto Editora, Portugal, 2014. 135 páginas
15 respostas para “Resenha: “Alabardas”, o último livro de José Saramago”
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Interessante… Preciso ler algo de José Saramago com urgência! É um autor que falta em minha lista de leituras 😉
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Precisa mesmo, Darlene. Saramago é um dos mais do nosso idioma, eu adoro! Abraços
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“maiores” ao invés de “mais”…rsrsrs
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Resenha muito bem feita. Mais uma vez te vejo como uma amante das obras de arte literária. Colocarei na minha lista de leituras, sem dúvidas. Parabéns pela resenha.
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Obrigada, Rancho, muito gentil! Abraços.
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O link do seu nome está errado, direciona a lugar nenhum. Dá uma arrumada pra gente chegar mais fácil no seu blog.
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Tentei mudar, mas não sei se vai dar certo. Se estiver okey, me dê um sinal. Muito obrigado pelo alerta.
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Agora sim, Ronald! Suriname? Poxa, que legal! E somos colegas, você é professor de português também. Estamos na luta!
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Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.
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Gosto demais não só do escritor José Saramago, mas principalmente do homem sensível, delicado e sem medo de se posicionar que ele demonstrou ser. Fiquei emocionada ao ler o discurso dele para o Nobel e a forma como ele citou os avós e a forma como pessoas analfabetas o influenciaram tanto. Sem dúvidas ele já era eterno antes de partir…
Obrigada pela resenha e pela indicação.
Abraços!
Juliana.
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Obrigada pelo comentário! Um abraço!
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Muito interessante a resenha feita sobre o livro. Com certeza é mais um título para minhas futuras leituras!
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Que bom! Um abraço!
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[…] lo depois de sua morte. Leia mais sobre ele aqui. Veja a resenha do último livro de Saramago, “Alabardas”, romance que, infelizmente, ficou inacabado. Saramago sai com a cara meio enfezada na caricatura, mas era bem o contrário, era uma pessoa […]
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